Depois dos Brics, os Norcs. Para Laurence C. Smith, geógrafo e especialista em mudança do clima da Universidade da Califórnia em Los Angeles, a primeira metade do século 21 assistirá à emergência de uma região do globo em que não se presta muita atenção: o Norte. Um Novo Norte, com crescimento econômico e demográfico acelerados pelo aquecimento global e pela globalização.
"Norc" é a abreviação de "Northern Rim countries", os países da Orla Norte. Em português, soaria melhor Extremo Norte. É das nações que circundam o oceano Ártico que trata seu livro, "The World in 2050 _ Four Forces Shaping Civilization's Northern Future" (O Mundo em 2050 _ Quatro Forças que Moldarão o Futuro da Civilização no Norte"; Dutton, 322 págs., US$ 26,95).
As quatro forças do título são a demografia (a população mundial continuará a crescer até 2050, chegando a 9,2 bilhões), a demanda por recursos naturais (idem), a globalização da economia e a mudança do clima. O Ártico, assinalam modelos climáticos, é a região do globo que mais se aquecerá. Melhor dizendo, já se aquece, à taxa de 1C ou 2C por década, dez vezes mais rápido que a média no restante do globo.
Isso se traduz em invernos mais amenos no norte do Canadá, Sibéria, Escandinávia e Alasca. E, quem sabe, nas próximas décadas, o derretimento completo da calota de gelo sobre o oceano Ártico durante o verão. Grande oportunidade para a navegação (um caminho mais curto entre Europa e Ásia) e para as jazidas já detectadas de petróleo e gás natural, porém de exploração e escoamento difíceis nas condições climáticas atuais.
Smith, no fundo, é um grande otimista. Ele não omite os problemas que serão causados no próprio Ártico pela mudança do clima, como o derretimento do solo congelado conhecido como "permafrost", que pode arruinar a infraestrutura dos Norcs.
Trata-os, contudo, com fleuma, assim como à temível previsão de que o consumo de combustíveis fósseis _carvão, petróleo e gás natural, motores do aquecimento global_ continuará a crescer. "Na minha opinião, estamos só no início de uma batalha que durará séculos", como quem diz: não adianta nada desesperar-se.
Smith também prefere acreditar que não haverá graves disputas geopolíticas no Novo Norte, nem guerras ou restrições à imigração. "Não se trata de dizer que a guerra não possa acontecer entre países como Canadá e Dinamarca, mas as linhas de fissura para um conflito estão muito menos aparentes do que para outras partes do mundo", tranquiliza.
Leia os trechos principais da entrevista realizada por e-mail:
- Se a temperatura não está crescendo tão depressa nos países tropicais, e como o Brasil e nações africanas vêm descobrindo - além de sua biodiversidade e terras agricultáveis - imensas reservas de matérias primas como petróleo (a exemplo das recentes descobertas brasileiras na camada do pré-sal), não seria mais correto predizer que um avanço mais importante deve ocorrer por volta de 2050 na altura do equador, em parceria com a China, do que na altura do círculo polar ártico?
Esses avanços pelo restante do mundo também acontecerão, não são mutuamente excludentes. Está muito claro que a Mongólia interior, por exemplo, é uma peça decisiva no futuro energético da China. Está igualmente claro que as areias betuminosas do Canadá e a península Yamal da Rússia são peças decisivas para o futuro da energia na América do Norte e da Europa, respectivamente.
- Levando em conta as areias betuminosas do Canadá, petróleo e gás dos Norcs, mais petróleo no Brasil e na África, carvão abundante nos EUA, na Rússia e na China, pode-se dizer que o mundo já está comprometido com um aumento paulatino das emissões de CO2 e com um aquecimento superior a 2C neste século? O livro afirma que "simplesmente não existe um meio realista de eliminar o petróleo, o carvão e o gás natural do portfólio de energias mundiais em apenas 40 anos".
A maioria dos formuladores de políticas concorda, depois dos fracassos de Copenhague e de Cancún em produzir um tratado internacional legalmente vinculante sobre mudança do clima, que estamos provavelmente comprometidos com um aumento superior a 2C na temperatura média global. Mas o aquecimento do clima não para simplesmente por aí, 2C é só o começo, a não ser que tomemos medidas concretas para controlar as emissões de carbono. Os oceanos nem sequer estão dando conta, ainda, do CO2 que já produzimos. Em nossa trajetória atual estamos a caminho de triplicar a queima de carvão até 2050. Quanto acabarão os seres humanos por aquecer o clima? Quais serão os debates dentro de 20 anos? Na minha opinião, estamos só no início de uma batalha que durará séculos.
- Legisladores americanos parecem apostar na captura e no armazenamento de carbono (CCS) para matar dois coelhos com uma só cajadada: mitigar a mudança do clima, diminuindo emissões de carbono, ao mesmo tempo em que se permite a manutenção da exploração de imensas reservas de carvão. É uma aposta errada?
A tecnologia CCS, na escala necessária para sequestrar todas as emissões de CO2 do carvão, é algo ainda inteiramente carente de comprovação. Seria uma aposta perigosa contar com isso.
- Quanto mais tarde os EUA enfrentarem a necessidade de cortar suas próprias emissões de CO2, maior e menos resgatável se tornará sua "dívida de carbono" com a atmosfera terrestre. Não será fácil pagá-la sem um desconto ou sem comprometer a competitividade das empresas americanas numa economia globalizada. Como reagirá o governo dos EUA, com medidas protecionistas?
Futuros políticos são impossíveis de predizer, porque são impelidos pelas decisões de líderes individuais. É muito mais difícil saber se os EUA continuarão com seu modelo de globalização mantido há tempos do que conhecer o futuro da temperatura média global.
- Algumas passagens do livro deixam no leitor a impressão de que o sr. se preocupa mais com a água do que com o esgotamento de reservas de petróleo. A impressão está correta?
Ambas são criticamente importantes, é óbvio. Mas a água será muito provavelmente a crise definidora do século 21. Podemos encontrar tipos alternativos de energia, mas não tipos alternativos de água.
- Quando o sr. se questiona sobre o que faz as civilizações vicejarem, deixa a guerra fora da equação. Não é muito otimismo?
Há razões para otimismo quando se considera a probabilidade de guerra aberta entre os países Norc. Não se trata de dizer que a guerra não possa acontecer entre países como Canadá e Dinamarca, mas as linhas de fissura para um conflito estão muito menos aparentes do que para outras partes do mundo.
- Os Norcs, de acordo com sua análise, parecem ter uma faca de dois gumes em suas mãos: o efeito da mudança do clima pode ser visto tanto como um bônus quanto como uma maldição para eles. O petróleo que se espera extrair do Ártico vai acelerar as emissões de carbono e a mudança do clima, que tornará o permafrost instável para construir estradas e prédios. Não estaríamos diante de um ciclo econômico mais do tipo expansão-e-crise ("boom-and-bust")?
A desestabilização do permafrost pode tornar certas áreas antieconômicas e talvez forçar seu abandono. Mas petróleo e gás são apenas uma pequena parte deste livro. Em graus variados, os Norcs possuem vantagens crescentes em coisas como água, educação, companhias globalizadas e políticas de imigração favoráveis. Meus argumentos se baseiam nelas, também, e não simplesmente na extração de recursos naturais.
- Por que o sr. está tão seguro de que a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (Unclos, na abreviação em inglês) oferece uma moldura adequada para prevenir disputas perigosas pelo controle das riquezas no leito marinho do Ártico? O direito internacional não impediu os EUA de invadir o Kuait nem o Iraque.
A convenção parece satisfatória, ao menos por ora, porque todas as cinco potências do Ártico se alinharam com ela de modo unânime. Eles resistem claramente a quaisquer outras propostas de governança para a região, por exemplo a governança internacional da Antártida.
- Sua conclusão é que a questão mais importante não é de capacidade, mas sobre o desejo: "Que tipo de mundo queremos?" Seria um sinal de que os pesquisadores do clima estão finalmente reconhecendo que sua ciência sempre teve uma dimensão ética que a maioria deles tentou soterrar sob toneladas de dados nos últimos 20 anos?
Essa sentença final fala sobre algo muito além da ciência do clima, sobre enfrentar os muitos outros dilemas éticos aventados pela obra. Até que ponto podemos danificar ecossistemas para obter os recursos naturais necessários para a sociedade moderna? Deveriam os imigrantes globais ser barrados ou cobiçados? Os idosos deveriam receber cuidados de seres humanos ou de robôs? O leitor encontrará muitas dessas questões éticas no livro.
(Marcelo Leite)
(Folha de SP, 17/1)
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