sábado, 9 de abril de 2011

Tarefa de governo: premiar – ou reprovar – os professores

O diretor para educação da OCDE diz que melhoria do ensino exige preparar e recompensar os bons docentes. E tirar da sala de aula os maus profissionais

Nathalia Goulart
Schleicher: avaliação periódica dos docentes é útil aos próprios professores

Schleicher: avaliação periódica dos docentes é útil aos próprios professores (Pauilo Giandalia)

"Nos sistemas mais avançados de ensino do mundo, a carreira é preenchida por profissionais de alto nível. Isso, e não os altos salários, é o que torna a profissão atraente"

Às voltas com o mau desempenho de estudantes brasileiros, do ensino fundamental ao superior, o Ministério da Educação promete criar em breve um exame nacional para avaliar candidatos a professores. É o reconhecimento daquilo que diversos estudos empíricos vêm demonstrando: fazer a educação funcionar passa pelo aprimoramento dos docentes. O desafio não é exclusivo do Brasil. O jornal americano Los Angeles Times comprou uma briga com docentes locais, que pediram boicote à publicação, ao exibir um ranking em que o (mau) desempenho dos estudantes era atrelado ao de seus mestres. Situações como essas chamaram a atenção da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), entidade formada por nações desenvolvidas, que acaba de realizar em Nova York o Primeiro Encontro Internacional sobre Professores, reunindo educadores, governos e ONGs. Para o físico alemão Andreas Schleicher, diretor para educação da OCDE e um dos coordenadores do encontro, governos de todo o mundo têm uma tarefa a cumprir: ensinar melhor seus professores, mantê-los motivados, premiar os bons profissionais - e reprovar os mal avaliados. "A meritocracia é um princípio muito importante. Manter a eficiência de um corpo docente implica não apenas dar aos professores oportunidade, apoio e incentivo para que continuem a fazer bem seu trabalho, mas também tirar da sala de aula aqueles que não são eficazes", diz. Na entrevista a seguir, Schleicher explica o atual desafio da carreira docente e conta como nações como Japão, Finlândia e Singapura vêm conseguindo bons resultados na área. "Nos sistemas mais avançados de ensino do mundo, a carreira é preenchida por professores de alto nível. Isso, e não os altos salários, é o que torna a profissão atraente."

Por que realizar um evento para repensar exclusivamente o papel dos professores? Mais do que nunca, o progresso social depende da qualidade dos sistemas de educação. Porém, a qualidade do sistema de educação jamais excede a qualidade de seus professores - que depende de seleção, formação continuada, plano de carreira e avaliações constantes.

De acordo com especialistas, aprimorar a formação do professor é um dos grandes desafios brasileiros na área da educação – e também uma questão fundamental para o desenvolvimento do país. Outra nações enfrentam o mesmo problema. É possível dizer que essa é uma questão universal no século XXI? Sim, absolutamente. E a razão é simples: em qualquer país, sempre existiram bons professores. A diferença é que no passado apenas uma parte da população precisava ser educada para liderar o desenvolvimento do país. Mas o custo social e econômico dessa filosofia tornou-se alto demais. Atualmente, os sistemas de educação precisam qualificar todos os seus professores, e não só alguns, se quiserem que todos os seus cidadãos tenham um ensino de qualidade. Além disso, no passado era possível supor que o que se aprendia na escola valeria para a vida inteira. Agora, temos o Google e a digitalização das habilidades cognitivas, com mudanças rápidas no mercado de trabalho: os sistemas de educação precisam proporcionar formas complexas de pensar e trabalhar para que as pessoas não sejam substituídas facilmente pelo computador.

Essa tarefa exige professores de qualidade. Como atrair os maiores talentos? Nos sistemas mais avançados de ensino do mundo, a carreira é preenchida por profissionais de alto nível. Isso, e não os altos salários, é o que torna a profissão atraente em países tão diferentes como Finlândia, Japão ou Singapura. Os candidatos a uma vaga de professor não se sentem atraídos por escolas organizadas como linhas de montagem. Eles desejam se deparar com uma organização de alta performance, com status, autonomia profissional e educação de alta qualidade atrelada ao profissionalismo, com sistemas eficazes de avaliação profissional e com carreiras diferenciadas. Portanto, essas são as questões que os países precisam resolver.

Quais os desafios dos governos? O primeiro é atrair candidatos qualificados e depois oferecer-lhes formação de boa qualidade. É difícil atrair bons candidatos se eles percebem que as instituições de ensino superior que formam professores não têm status na sociedade. Não é de espantar o fato de que os países que conseguiram elevar o nível de seu corpo docente são os mesmos que tornaram mais rígidos os critérios de admissão em seus programas de formação de professores. Igualmente importante é definir o que é um bom professor. Em muitos países, padrões assim guiam a formação inicial dos profissionais, a certificação, as avaliações de desempenho, o desenvolvimento profissional e o avanço na carreira. Em muitos sistemas de alta performance, a educação do professor não consiste apenas em fornecer o treinamento básico em temas relevantes e pedagogia, mas também desenvolver competências para a prática reflexiva.

O Brasil aplicará pela primeira vez uma avaliação nacional para seleção de professores da rede pública. É uma medida positiva? A avaliação do professor pode contribuir para a melhoria das práticas docentes, identificando pontos fortes e fracos. Também ajuda a atribuir aos professores a correta responsabilidade pelo nível do aprendizado de seus alunos. É um tipo de prestação de contas. Em geral, os professores veem avaliação e feedback de forma positiva. Em uma pesquisa realizada pela OCDE, 80% dos professores disseram que a avaliação é útil para o desenvolvimento profissional, e quase metade relatou que os resultados os levaram a aprimorar o conhecimento.

Há algumas iniciativas no Brasil de promover o professor por seu mérito. Porém, essa ainda é uma questão controversa entre os profissionais. A meritocracia é um princípio muito importante. Manter a eficiência de um corpo docente implica não apenas dar aos professores oportunidade, apoio e incentivo para que continuem a fazer bem seu trabalho, mas também tirar da sala de aula aqueles que não são eficazes.

A questão salarial é muitas vezes apontada como obstáculo ao avanço da qualidade. Como o senhor enxerga essa questão? Em alguns países, como Japão e Singapura, o governo acompanha de perto as variações de mercado para se certificar de que os salários dos professores são competitivos. Mas, na maioria dos países, os vencimentos são inferiores aos de outros profissionais graduados. No entanto, há muitos países onde o ensino ainda é atraente porque oferece aos professores um ambiente de trabalho fascinante e o salário se torna apenas o pano de fundo da questão. Igualmente, é importante oferecer um plano de carreira aos docentes. Se você disser a um jovem professor de matemática de 25 anos de uma escola primária que, daqui a 25 anos, ele continuará sendo a mesma coisa, ele não verá perspectivas em seu futuro. Os países bem sucedidos em educação promovem um ambiente que oferece novos horizontes ao professor, com crescimento profissional.

Que habilidades os professores devem ter para enfrentar os novos desafios da educação? Eles precisam equipar os alunos com as competências necessárias à formação de cidadãos ativos. Precisam personalizar as experiências de aprendizado para assegurar que todo estudante tenha a chance de ter sucesso e lidar com a crescente diversidade da sala de aula e as diferenças no estilo de aprendizado. Eles também precisam lidar com as inovações no currículo, na pedagogia e no desenvolvimento das ferramentas digitais.

A tecnologia é um desafio aos professores? Bons professores usarão bem as tecnologias – e, ao falar de tecnologia, me refiro tanto a recursos digitais quanto ao repertório adequado de estratégias pedagógicas.

Hora de peitar os sindicatos

"Antes que a patrulha trate de pôr palavras na minha boca, eu me adianto. Não sou contra a existência de sindicatos, mas acho que eles devem ser vistos como defensores de seus próprios interesses. Seu peso no discurso público deve ser temperado por essa realidade "

Quando se fala sobre a política da saúde em relação ao tabagismo, os representantes dos fabricantes de cigarro raramente são trazidos para o debate. Essa exclusão não se dá pelo seu desconhecimento da questão, já que eles claramente conhecem o produto mais do que a maioria de seus interlocutores, nem porque haja algum preconceito contra essas pessoas — entendemos que elas estão fazendo esse trabalho para sustentar suas famílias, e não por um desejo de matar milhões de pessoas por ano. Desconsideramos suas opiniões porque sabemos que elas não terão em mente o bem público, mas única e exclusivamente o ganho de sua empresa. São parte interessada na questão e, portanto, sabemos que seu julgamento será influenciado por vieses potencialmente conflitantes com o interesse comum.

Na área da educação, que é tão importante quanto a da saúde, não é assim. Se você tem frequentado a imprensa brasileira nas últimas décadas, sua visão sobre educação será provavelmente idêntica à dos sindicatos de professores e trabalhadores em educação. Você deve achar que o país investe pouco em educação, que os professores são mal remunerados, que as salas de aula têm alunos demais, que os pais dos alunos pobres não cooperam, que deficiências nutritivas ou amorosas na tenra infância fazem com que grande parte do alunado seja “ineducável” e que parte do problema da nossa educação pode ser explicada pelo fato de que as elites não querem um povão instruído, pois aí começarão os questionamentos que destruirão as estruturas do poder exploratório dessas elites. Não importa que todas essas crenças, exceto a última, sejam demonstravelmente falsas quando se cotejam décadas de estudos empíricos sobre o assunto (a última não resiste à lógica). Todas elas vêm sendo defendidas, ad nauseam, pelas lideranças dos trabalhadores da educação. E, como são muito pouco contestadas, acabaram preenchendo o entendimento sobre o assunto no consciente coletivo, e já estão de tal maneira plasmadas na mente da maioria das pessoas que todas as evidências apresentadas em contrário são imediata e automaticamente rechaçadas. É como se ainda negássemos a ligação entre o cigarro e o câncer de pulmão.

A sociedade brasileira parece não reconhecer que os sindicatos de professores pensam no bem-estar de seus membros, e não no da sociedade em geral. Incorporamos a ideia de que o que é bom para o professor é, necessariamente, bom para o aluno. E isso não é verdade. Cada vez mais a pesquisa demonstra que aquilo que é bom para o aluno na verdade faz com que o professor tenha de trabalhar mais: passar mais dever de casa, mais testes, ocupar de forma mais criativa o tempo de sala de aula, aprofundar-se no assunto que leciona. E aquilo que é bom para o professor — aulas mais curtas, maior salário, mais férias, maior estabilidade no emprego, maior liberdade para montar seu plano de aulas e para faltar ao trabalho quando for necessário — é irrelevante ou até maléfico para o aprendizado dos alunos.

É justamente por haver esse potencial conflito de interesses entre a sociedade (representada por seus filhos/alunos) e os professores e funcionários da educação que o papel do sindicato vem ganhando importância e que os sindicatos são tão ativos politicamente, convocando greves, passeatas, manifestando-se publicamente com estridência etc., da mesma maneira que a indústria tabagista ou de bebidas faz mais lobby do que, digamos, os fabricantes de fralda.

Uma das razões que tornam os sindicatos tão poderosos é que eles funcionam. Estudo do fim da década de 90 mostrou que, entre os professores brasileiros, a sindicalização era o fator mais importante na determinação do seu salário: os filiados tinham salários 20% mais altos que os independentes.

Outras pesquisas sobre o papel do sindicato dos professores trazem resultados curiosos. Estudo de um economista de Harvard tentando entender o porquê da queda da qualidade das pessoas que optaram pela carreira de professor nos EUA entre 1961 e 1997 encontrou dois fatores: um deles, que explica três quartos do problema, era a crescente sindicalização dos professores, causando compressão salarial (o outro fator era a emancipação feminina, já discutida aqui em artigo anterior). Quando um sindicato se “adona” de uma categoria, a tendência é que os salários de seus membros deixem de ser um reflexo de seu mérito individual e passem a ser resultado de seu pertencimento a alguma categoria que possa ser facilmente agregável e discernível — como ter “x” anos de experiência ou ter feito uma pós-graduação, por exemplo —, pois só assim é possível estabelecer negociações salariais coletivas, para milhares de membros. E só com negociações coletivas é que se torna possível a um sindicato controlá-las. Talvez seja por isso que os aumentos salariais tenham se provado ferramenta tão ineficaz na melhoria da qualidade da educação: as pessoas mais competentes parecem não fugir do magistério pelo fato de o salário ser alto ou baixo, mas sim por seu salário não ter nenhuma relação com seu desempenho. Nenhum ás quer trabalhar em lugar em que recebe o mesmo que os vagabundos e incompetentes. Talvez seja por isso que outro estudo mostrou, paradoxalmente, que a filiação a um sindicato afeta de forma significativamente negativa a satisfação dos professores com a sua profissão. É o preço a pagar pelo aumento salarial.

O outro estudo que conheço sobre o tema é do alemão Ludger Wossmann, que comparou dados de 260 000 alunos em 39 países. Uma de suas conclusões é que naquelas escolas em que os sindicatos têm forte impacto na determinação do currículo os alunos têm desempenho significativamente pior (todos os estudos mencionados aqui estão na íntegra em twitter.com/gioschpe).

Quando ouvir um membro desses sindicatos se pronunciando, portanto, é mais seguro imaginar que suas reivindicações prejudicam o aprendizado do que o contrário. E, especialmente quando a questão for salarial, é preciso levar em conta que não apenas os professores são beneficiados por seu aumento, como os sindicatos também, já que são mantidos por cobranças determinadas através de um porcentual do salário.

Antes que a patrulha trate de pôr palavras na minha boca, eu me adianto: não sou contra a existência de sindicatos de professores, nem contra o lobby da indústria do cigarro, da bebida ou das armas. O direito de livre associação e expressão é um pilar inviolável de um estado democrático, e está acima até mesmo do aprendizado de nossos alunos. Só acho que os sindicatos e seus representantes devem ser vistos pelo que são: defensores de seus próprios interesses. Seu peso no discurso público deve ser temperado por essa realidade.

Esse insight causa dois impactos importantes. O primeiro é que nós, os defensores da melhoria educacional do país, estamos sós. O sindicato dos professores não é nosso parceiro e a união dos alunos deixou há muito de defender os interesses educacionais do alunado, trocando-o pela generosa teta do Erário e pelo triste mercantilismo da emissão de carteiras vale-desconto. Não podemos esperar por movimentos organizados para abraçar essa causa: precisamos criar nós mesmos essa união, que será inclusive boicotada pelo status quo.

O segundo é que, toda vez que uma organização com esses nobres fins se forma, o cacoete de buscar uma parceria com os representantes dos professores é o beijo da morte. Se quisermos defender exclusivamente o interesse do alunado, a relação com os sindicatos de trabalhadores da educação será provavelmente adversarial, talvez neutra, jamais colaborativa. Ou você já viu oncologista fazer parceria com a Souza Cruz ou o “Sou da Paz” de mãos dadas com a Taurus?

Gustavo Ioschpe é economista